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Acerca do Plano Divino

A Consciência

 

Espelhos paralelos, alegoria da consciência num mundo eternalista.

A impotência académica

Consciência no animal

Antes do cérebro

O cérebro -- consciência do mundo

Consciência de si no mundo

Consciência no humano

Consciência na pessoa

Mente e eternalismo

Corrente da consciência

A ideia de eternidade

Sonhos premonitórios

A impotência académica

A Língua Portuguesa atribui a mesma palavra à consciência, processo psicológico e respectivo resultado (inglês, conscience), e à consciência moral (inglês, consciousness). A consciência moral acrescenta à simples consciência a deliberação da escolha, o livre arbítrio. A deliberação requer diálogo interior, exige a consciência de si em si, a forma mais elaborada de consciência, radicalmente diferente da consciência do animal não humano à qual falta o decisivo instrumento da palavra.

A alma é, por definição, o elemento espiritual introduzido na consciência humana e responsável do livre arbítrio. Que recebe a alma em troca da liberdade e orientação que faculta a uma consciência material elaborada mas, de outro modo, automática? Recebe a individualidade, a forma, a tal consciência de si em si, a qual o mundo espiritual, a que pertence, não podia facultar-lhe, como veremos.

O processo geral da consciência de si em si, no mundo físico e no mundo espiritual é o mesmo. Porém, o respectivo suporte e conteúdo, não poderiam ser mais diferentes. No mundo material, o indivíduo confronta-se a si mesmo. No mundo espiritual, a alma individualizada confronta-se a outras almas. Assim, de cada lado, há limitações e possibilidades próprias.

Não será possível compreender a vida da alma, distribuída por dois mundos tão distintos, sem aprofundar o conhecimento quer da estrutura do mundo material quer da organização do mundo espiritual. Tal conhecimento não é trivial; requer-se algum algum exercício ao procurar estabelecer a correspondência funcional entre ambos os mundos, protagonizada, em primeira mão, pela alma. Uma visão coerente e operativa dos dois mundos em relação permitirá compreender a perfeita unidade do Pai na prodigiosa diversidade do seu pensamento, o Espírito (Santo) de Deus. Veremos, então, a função nuclear do amor.

Na multidão de neuro-cientistas, filósofos, psicólogos e outros especialistas, que uma Academia pletórica, sustentada por dinheiros públicos, produz, multiplicam-se, encarniçadas mas estéreis investidas no estudo da consciência, do seu suporte físico e da sua essência como fenómeno. A prolixidade e aparente sofisticação não conseguem ocultar o sistemático falhanço. O leitor interessado encontrará no livro seguinte um apanhado das mais interessantes tentativas de compreender a consciência.

À primeira vista, as estratégias filosóficas e científicas para enfrentar o problema do corpo--mente e o quebra-cabeça da consciência parecem muito diferentes. As primeira analisam conceitos e tornam-os mais claros, excluindo os que são logicamente implausíveis. A estratégia científica investiga funções mentais específicas a fim de identificar as áreas e processos cerebrais envolvidos na sua realização. Seria, porém, errado considerar simplisticamente a filosofia como uma tarefa puramente conceptual e a ciência como um empreendimento meramente empírico. A ciência não pode ser surda à análise conceptual tanto quanto a filosofia não pode ser cega aos resultados científicos. Indiscutivelmente, a metodologia mais frutífera para estudar a mente humana favorece uma abordagem altamente integrada, capaz de combinar achados relevantes de diferentes disciplinas.

Cavanna, A. & Nani, A. Consciousness -- Theories in Neuroscience and Philosophy of Mind. Springer, 2014.

Consciência no animal

Sem discutir a causa, a raiz, o processo, julgamos que a consciência pode distribuir-se em três níveis. A consciência do mundo, a consciência do próprio no mundo, a consciência do próprio em si mesmo.

Antes do cérebro

Cada nível é construído sobre o anterior acrescentando algo. Sugiro que comecemos do nível anterior à própria consciência elementar, antes do cérebro. Os seres unicelulares, microscópicos, como a amiba, não dispõem de cérebro e, no entanto, respondem ao meio ambiente de forma relativamente elaborada. Como o ADN das diversas variedades de amiba é incrivelmente extenso, duzentas vezes mais extenso que o ADN humano, é possível que as funções que, mais tarde, vieram a ser delegadas no cérebro, sejam exercidas pelo próprio ADN. É uma especulação que julgamos pertinente face a outras especulações eventualmente impertinentes.

 

Amiba.

As amibas deslocam-se de acordo com uma lógica adaptativa, alteram a forma do corpo, apreendem o seu alimento. Podemos supor que se trata de uma colecção de reflexos, de automatismos simples, cujas regras estão fixamente inscritas nesse extenso ADN.

Esta hipótese de situar no ADN a memória das reacções adequadas ao meio deve ser aceite com prudência. A Paris Japonica, planta floral, tem o maior genoma de qualquer planta ou animal, com cerca de 150 mil milhões de pares de bases. O dobro da amiba e cinquenta vezes o genoma humano. Claro que a planta não necessitaria de mais aprendizagem que a amiba. Afinal, não se move; que aprenderia? Será que a codificação se foi tornando mais elegante ao longo do tempo?

 

Paris Japonica, campeã do ADN mais extenso

seja no reino vegetal ou animal.

Seja como for, qual a vantagem comparativa do cérebro? O cérebro permitiria substituir uma colecção linear de automatismos por um quadro, pluridimensional, de regras muito mais numerosas -- como veremos a seguir -- melhor adaptadas à variedade e variabilidade das situações enfrentadas por cada indivíduo.

O cérebro -- consciência do mundo

Quando os organismos unicelulares se convertem em células de um corpo maior, o ambiente de cada célula fica mais controlado enquanto o meio-ambiente do corpo aumenta em complexidade. Os órgãos dos sentidos, contemporâneos do cérebro, normalizam os estímulos em sensações, o cérebro converte as sensações em percepções as quais se agregam em situações.

Talvez se possa dizer que o cérebro é, essencialmente, um arquivo de imagens. Não queremos dizer imagens visuais mas composições de percepções as quais, adquiridas ao mesmo tempo, traduzem uma situação. Sempre que o animal regista um conjunto de sensações simultâneas, o seu cérebro gera uma imagem perceptual. Se tal imagem coincide com uma imagem em memória, reage por uma acção adequada. O comportamento torna-se muito mais articulado, mais finamente adaptado às circunstâncias.

Suponhamos que o mundo se traduz por três estímulos distintos A, B e C. A amiba pode responder com três reflexos diferentes. O organismo pluricelular dotado de cérebro pode compor sete imagens: A, B, C, AB, AC, BC e ABC.

 

Admitamos, agora, que tal organismo distingue entre uma dúzia de estímulos distintos. Por exemplo, dispõe de quatro vias sensorais -- sejam, de temperatura, de movimento do meio, da presença de dois químicos diferentes -- e separa três níveis de intensidade em cada via. Sem cérebro, poderia responder com uma variedade de doze reflexos. Dotado de um cérebro capaz de memorizar imagens constituídas por apenas duas percepções associadas, disporá de 66 alternativas de comportamento (combinações simples). Se o cérebro for tão potente que possa constituir imagens de quatro elementos, o número de alternativas de comportamento sobe para 495.

Se as imagens das situações em memória incluirem a resposta do organismo à situação e o correspondente resultado, satisfatório ou não, o organismo adquire a faculdade de aprender. Perante uma dada situação, responderá de modo a completar o quadro que inclui a resposta satisfatória.

Desde que o organismo possua órgãos sensoriais adequados e um cérebro capaz de memorizar um número elevado de imagens, distintas e bastante detalhadas, relativas a situações vividas, podemos afirmar que ele adquiriu consciência do mundo. A mosca é um bom exemplo.

A consciência do mundo corresponde à existência de imagens mentais. Quando o cérebro obtém, a partir dos sentidos, uma dada imagem da realidade, procura completá-la agindo de acordo com uma imagem análoga, presente na memória, que inclui, além dos elementos percebidos, uma acção já empreendida e o seu efeito útil.

É assim que os animais antecipam a realidade, esperando o alimento ou o prazer onde ele provavelmente se encontra. É o pobre reflexo condicionado cuja descoberta, nos animais superiores, os pobres psicólogos alardearam como se fosse grande. Tal insecto aborda a florzinha amarela de que se tem alimentado e despreza a flor azul que, para ele, é apenas uma imagem perceptual sem interesse ou imagem nenhuma.

Referimos, de forma leviana, a possibilidade de aprender. É uma possibilidade certamente limitada, nos insecto. Se a abelha tivesse de aprender a distinguir as flores de que se alimenta, certamente morreria antes de o conseguir. De modo que os quadros mentais a que nos referimos hão-de estar inscritos no seu ADN, tal como está a estrutura material do seu corpo. É outra dificuldade que se acrescenta a tantas mais para quem encara a selecção meramente natural como coisa possível.

A complexidade inerente aos processos da vida torna a relação entre vida e cognição um problema muito interessante e difícil. Em particular, tem sido tradicionalmente muito difícil não apenas identificar com precisão as origens das atividades cognitivas, mas até mesmo distinguir quais as atividades biológicas que devem ser consideradas de tipo cognitivo.

Moreno, A., Umerez, J. & Ibanez, J. Cognition and Life: The Autonomy of Cognition. Brain and Cognition, 34, 107–129 (1997)

Se os quadros mentais do insecto poderão facilmente inscrever-se no ADN, o mesmo não se dirá dos quadros mentais de um animal superior, a não ser os dos mais elementares instintos. Mas que dizer de actividades complexas -- a construção de um ninho por uma ave, de um dique por um castor, o percurso de vida de um salmão ou de uma truta? -- Há algo mais...

Consciência de si no mundo

Elucidada a consciência do mundo, como é, agora, a consciência do próprio no mundo?

Cada um faz parte do seu meio. Quanto maior a sua capacidade de influenciar o meio, mais aguda é a consciência de si mesmo nesse meio. Desde logo, pelo movimento. Está aqui e, de seguida, está acolá; pela possibilidade de agir sobre o meio, reduzindo à imobilidade a presa que fugia, descobrindo ou escondendo isto ou aquilo, cavando um buraco, construindo um ninho. Não se limita a esperar, calcula e antecipa. As imagens mentais já não são estáticas, não se limitam a identificar situações a partir de circunstâncias. São a descrição de uma experiência. O tempo ganha importância, depois da fotografia vem o cinema.

O animal toma consciência de si mesmo no mundo como aquela entidade que permanece num ambiente que constantemente muda. A percepção do próprio corpo, a distinção entre o que faz e o que lhe é feito, estabelecem a individualidade como atributo da sua presença.

Subimos vertiginosamente a escala animal. É de crer que todas as faculdades do animal se encontrem ainda mais desenvolvidas no humano. Que há de especial nele? Será que podemos dizer que o animal pensa?

Se, por pensamento, se quer apenas significar actividade cerebral, certamente que o animal pensa desde que possui um cérebro. Se significamos pensamento como actividade mental que se influencia a si mesma desenvolvendo estados mentais traduzidos em emoções ou atitudes, julgo que temos de esperar pelos animais superiores. A ideia de pensamento envolve autonomia mental.

Os animais, dotados de sensorialidade e de cérebro, possuem a faculdade de sentir dor e prazer pois que são os critérios na raiz dos seus comportamentos. O facto de não demonstrarem evidente transcendência espiritual não deve fazer esquecer que evitar o sofrimento dos animais é um dever moral. Evitar não significa eliminar mas, dentro do possível, diminuir.

Consciência no humano

Os cães sonham. Será que possuem imaginação? A pergunta é oportuna. A imaginação é sinal de um pensamento que se emancipa dos estímulos exteriores. Não porque os ignore mas porque vai mais além.

Imaginação como refúgio, libertação, recurso, projecto. A imaginação é a primeira etapa da temível e formidável autonomização do pensamento. Antecipemos, pois, a tempestade. A imaginação é indispensável à invenção do instrumento, ao melhor uso de pedras, de paus, do terreno. É lugar comum dizer-se que a mente e a mão se fizeram um ao outro. O humano já não se limita a evocar circunstâncias e experiências mais propícias. Não imagina apenas pela satisfação de imaginar. Imagina para afeiçoar e construir. A imaginação, disciplinada pelo proveito, sustentada na memória, condensa-se em conhecimento.

O conhecimento torna-se de tal modo complexo que não pode ser constantemente reelaborado pelo indivíduo nem transmitido inatamente pela capacidade do seu ADN. É acumulado e transmitido, geração após geração. Pelo exemplo da geração anterior e, finalmente, pela linguagem.

Vejam-se as possibilidades que a linguagem abre. Enquanto o exemplo apresenta as tarefas como um bloco de operações que é indispensável imitar fielmente, a linguagem permite objectivar, distinguir e autonomizar o detalhe. Por um lado, a linguagem multiplica as possibilidades técnicas da inovação, por outro lado, ao designar actos, tarefas e propósitos por palavras, facilita a emissão de instruções, avisos, ordens, propostas e pedidos. Surge a razão como norma do conhecimento e a cultura como repositório da razão efectiva. A justaposição da cultura e da prática corrente vulgariza a comunicação verbal a qual deixa de ser mero acessório da acção para se tornar um hábito comum.

Entretanto, o humano descobre que pode falar consigo próprio. É duas pessoas e uma só, ao mesmo tempo. É então que toma consciência de si em si mesmo. O pensamento adquire um novo estilo, a reflexão. Como num espelho.

Porque não falam os animais? Porque não podem. E porquê não podem? Porque não precisam. E porquê não precisam? Porque a sua capacidade de agir no mundo é limitada. A formiga e o castor constroem mas não projectam. Cortam e juntam materiais mas não os conjugam, não os articulam em partes dotadas de forma particular e inovadora. Os animais imitam-se, seguem-se, confrontam-se. Mas não se combinam no empreendimento, muito menos se encontram no mercado. Ora, a palavra é o pensamento posto em comum.

A palavra é um objecto mental que pode ser transmitido e articulado. A palavra tanto assegura o diálogo interior, o pensamento, como a comunicação. A comunicação dirige o pensamento em conhecimento, razão e cultura e, finalmente, em empreendimento.

Julgamos ter anotado fielmente as fases da consciência: a) consciência do mundo através de imagens mentais fixas e circunstanciais; b) consciência de si no mundo, através de experiências de que o próprio participa como agente, registadas em imagens mentais animadas; c) confirmação da identidade própria pela presença continuada do corpo; d) autonomização do pensamento em imaginação; e) diversificação da experiência pela imaginação e pela mão; f) linguagem como instrumento do conhecimento, da inovação e da comunicação; g) aparecimento da razão e da cultura como normalizadores do conhecimento; h) banalização da linguagem; i) início do pensamento reflexivo, no indivíduo; j) descoberta de si em si através da persistência do diálogo interior. Eis aí o humano completo! Onde está a alma?

O humano completo, sem a alma... Porém, como animal que fala, que fala com outros e consigo mesmo, que regista, elabora e partilha conhecimento, é o depositário ideal da alma. Privado da alma, alardeie tristeza ou alegria, fiel ou rebelde à cultura do grupo, diligente ou indigente, o animal humano, estratega temível, nunca hesita.

Um indivíduo sem alma, um robot dotado de consciência de si em si, é possível? Talvez. Mas seria mero espectador, impotente, da sua actividade mental. A partir do momento em que, ainda que espectador, formula uma apreciação do jogo de que não participa, rompe-se o isolamento e entra no jogo ainda que apenas pelo menear da cabeça e pela direcção do olhar. Se a natureza é económica, porque haveria de criar a consciência caso fosse esta mero epifenómeno sem qualquer interferência no desenrolar das coisas?

Consciência na pessoa

Esperar-se-ia que o nível superior de consciência exigisse a alma. Não sendo a alma necessária ao humano, aceitar-se-á que haverá homens e mulheres destituídos de alma, destituídos do livre arbítrio que se julgava caber a cada um. O humano é necessário à alma mas a alma não parece necessária ao humano. É triste e preocupante! Onde a alma cabe mas não está presente, pode introduzir-se outra vontade.

Chamemos, agora, pessoa à entidade que reúne a alma e o indivíduo. Quando a alma se empenha e o indivíduo a aceita temos pessoa. Umas vezes somos meros indivíduos outras vezes somos pessoas inteiras. São as atitudes e os actos que denunciam o estatuto interior e determinam a consideração que cabe a cada um. Parece ser esse o sentido das duas parábolas da figueira, no evangelho:

“-- Quando os seus ramos se renovam e as folhas brotam, sabereis que está próximo o verão.”

“-- Eis que há três anos venho procurar fruto nesta figueira, e não o acho. Cortai-a; por que ocupa ainda a terra, inutilmente?”

A capacidade de processamento da alma é, como veremos, extraordinária. A ponto de permitir distinguir a vida do simulacro de vida que a consciência sem alma pode perceber.

Jesus Cristo terá vindo ao mundo para alertar os humanos que rejeitam a alma, que não recebem o verdadeiro baptismo, o baptismo diário no Espírito Santo. Porém, um indivíduo sem alma pode ser influenciado por uma pessoa com alma. Como se o livre arbítrio desta passasse para aquele, à maneira do cão que segue o dono ou do rebanho que obedece ao pastor. Alegoria repetidamente aludida por Jesus Cristo.

O livre arbítrio não é permanente e universal no humano! Só quando o humano quer e a alma se dispõe. O termo crueldade manifesta o atributo de quem é cru, básico, de quem não é trabalhado pelo Espírito. O livre arbítrio exige a consciência de si em si mas não lhe pertence como atributo. Muitos vivem em vão. Citando Shakespeare: “O mundo é um palco e os homens e mulheres apenas actores.” De facto, o actor procede mediante um programa obrigatório, não é livre.

A citação de  Shakespeare manifesta desencanto. Se o indivíduo não percebe Deus rejeita a alma. A cidade envolve, em demasia, o humano na sua obra; não é só a habitação construída e o vestuário tecido mas os infindáveis utensílios e a excessiva regulamentação da existência. É a vida rural, a vida natural, que preserva a ligação directa da criatura com o Criador. Com a cidade surge a distracção e o orgulho. A faculdade intuitiva, condição do acolhimento da alma como rainha da mente, tende a ser substituída pelo pensamento automático.

Ainda estamos longe de compreender todo o contexto do Plano Divino. A partir de agora, se o leitor estiver de acordo, vamos reservar o termo consciência para a sua forma mais elaborada, a consciência de si em si, a qual permite a reflexão e a organização autónoma do pensamento. E vamos passar a designar o Espírito (Santo) de Deus por Espírito porque o Espírito é todo santo. Conservar a maiúscula para distinguir o substantivo colectivo do singular, espírito.

O suporte físico da consciência de si em si, isto é, da mente, será abordado a seguir. A ligação entre alma e mente, isto é, a possibilidade do livrearbítrio, será discutida em capítulo posterior.

Mente e Eternalismo

Antes de discutirmos a vida da alma, o processo da encarnação e, posteriormente, o do purgatório -- numa perspectiva técnica mais do que punitiva -- temos de falar no tempo. O tempo é o palco dos acontecimentos, das experiências individuais e o método da sua ordenação. Experiências materiais no tempo material e experiências espirituais no tempo do Espírito. Mas ainda nada dissemos acerca do tempo.

Corrente da consciência

O conceito de consciência é simples. O próprio dialoga consigo mesmo, interage consigo mesmo, reflecte. Por misterioso que pareça, habituamos-nos à prática do pensamento consciente, não estranhamos que os dois que dialogam sejam sentidos como um, e ao contrário.

Como pode ser possível que cada um se desdobre em dois ou, até, em mais do que dois? Eu falo comigo e outro eu, que não é bem aquele eu com quem falo, me responde. A realidade não é o que parece. O eu de há um instante atrás permanece e o eu do próximo instante já aqui está.

Quer dizer que o tempo é uma ilusão? É uma ilusão o modo como concebemos o tempo. Passado, presente e futuro possuem a mesma consistência física, interagindo para originar a realidade aparente. Nós fazemos parte dessa realidade. O diálogo entre os múltiplos eus origina, ao mesmo tempo, a consciência e a ilusão da passagem do tempo. A ideia não é nova, está implícita na conhecida expressão “corrente da consciência.”

Vamos experimentando estados mentais em sequência. Esses estados da mente sustentam o auto-diálogo da consciência assim como a percepção do mundo físico tal como se apresenta em cada instante dessa corrente da consciência. Percorremos a paisagem, num comboio, e, ao percorrê-la, fazemos parte dela.

O conceito de um universo reunindo a presença simultânea de todos os instantes cronológicos tem fundamentação científica? Sim. E tem expressão trivial e permanente: onde localizar os eus que dialogam “agora” senão em tempos diferentes? A discussão do fundo científico gostaria de a deixar para depois.

O conceito é simples mas de difícil operação. Falta que nos habituemos ao seu uso. É fácil ceder à ilusão do tempo aparente; nesse caso, cuidar que a ilusão não seja engano mas, apenas, método cómodo de enunciar a sequência de instantes como se fora sucessão.

 

O tempo é uma dimensão física adicional onde todos os instantes têm lugar.

É o tempo que confere consistência à realidade. Tal como as três dimensões do espaço conferem solidez aos objectos.

Se a eternidade é como um filme, quem faz passar o filme? Não é o filme que passa, é a nossa consciência que o percorre. Nós fazemos parte do filme.

A consciência faz correr o filme porque é parte dele.
 

A ilusão da passagem do tempo é uma consequência do funcionamento da mente. Se eu falo comigo, estão presentes à consciência duas instâncias sucessivas de mim mesmo. A instância seguinte passa a anterior como dois pés que caminham. Imaginar alguém que sobe a escadaria do tempo. No entanto, é preciso imaginar que eu não tenho de subir a escadaria pois outros eus ocupam já as sucessivas posições. O processo mental acompanha a sucessão dos sucessivos “presentes.”

 

Mesmo quando pretendemos denunciar a aparência do tempo material ou cronológico, tendemos a cair na ratoeira do hábito, aludindo a esse tempo como se fora sucessivo e não meramente sequencial.

São essas cadeias de instâncias ou réplicas do mesmo que permitem a consciência. Quando me percebo, eu estou a perceber o meu eu de um instante seguinte, o qual, por sua vez, está a perceber o meu eu do instante que lhe sucede. Assim, eu tenho consciência de mim a ter consciência de mim.

 

 Como esse processo é continuado, temos a ilusão da passagem do tempo. Mas porque não tenho eu a consciência simultânea de todos os tempos? Tenho, mas repartida pelas sequentes instâncias de mim mesmo. Neste momento do tempo de Deus ou do tempo do Espírito, réplicas minhas estão a viver todos os instantes da minha vida.

A ideia do universo eternalista ou universo-bloco começou a impor-se, no mundo da Física, na última década do século XIX. Nas palavras de Oliver Lodge, pioneiro, com Hertz, das ondas electromagnéticas:

Uma ideia luminosa e prestável é ser o tempo apenas um modo relativo de considerar as coisas; nós progredimos através dos fenómenos a um certo ritmo, e esse avanço subjetivo interpretamo-lo de maneira objetiva, como se os eventos se movessem necessariamente nesta ordem e nesse ritmo preciso. Mas esse pode ser apenas o nosso modo de considerá-los. Os eventos podem, de alguma maneira, existir sempre, passado e futuro, e seremos nós que estamos a chegar a eles e não eles que estejam a acontecer. A analogia de um viajante num comboio é útil; se ele nunca pudesse sair da carruagem nem alterar seu ritmo, ele provavelmente consideraria as paisagens como sucessivas, incapaz de conceber a sua coexistência…

Lodge, Oliver. Citado por Bricklin, J. What Dies? Eternalism and the Afterlife in William James Journal of Consciousness Exploration & Research, December 2016, Vol. 7, Issue 11, pp. 1119-1140.

Depois da morte continuamos a existir fisicamente, no passado, através das correspondentes instâncias de nós próprios que aí se situam. Claro que, se permanecemos, será noutra dimensão do tempo, no tempo do Espírito, para o qual a eternidade se encontra toda presente. A existência de cada um continua confinada a um curto segmento de uma recta cronológica de comprimento indefinido.

De modo que a permanência física é fraco consolo para as instâncias de nós que se encontram próximas do limite superior daquele segmento. Veremos que, eventualmente, nem essa permanência física está garantida. A vida eterna é, apenas, a da alma pois que a alma é do Espírito (Santo) de Deus.

A ideia de eternidade

A eternidade em bloco parece ficção científica. É certo que o bloco da eternidade, exposto a Deus na sua totalidade, explica tanto a omnisciência divina como, já vimos, a consciência animal com a qual as almas, por necessidade, se equipam. Temos, entretanto, de aceitar que tal bloco não é rígido mas se anima pela acção do livre arbítrio, manifestação da liberdade da alma.

Segundo Boécio, a eternidade é a posse total, simultânea e completa da vida interminável. Segundo São Tomás de Aquino, o tempo é, tão só, a numeração, ou contagem, do movimento segundo um antes e um depois. Dois filósofos cristãos que anteciparam, de séculos, o que a Física moderna e a lógica da Psicologia terão descoberto.

O tempo não é mais que uma convenção -- melhor, um método -- pela qual acedemos à materialidade das coisas. A matéria não conhece o tempo como nós o conhecemos. A matéria é feita de todos os tempos ao mesmo tempo.

A definição mais perfeita de eternidade é dada por um pensador cristão do fim do Império Romano. Boécio... escreveu A Consolação da Filosofia… Define a eternidade como a “posse total, simultânea e completa da vida interminável” (…) Essa é a definição clássica de eternidade (...) aprofundada por São Tomás de Aquino na Suma Teológica. Como podemos entender a eternidade se a eternidade não nos é dada imediatamente? A eternidade não é uma evidência para nós. Nós nunca vimos nada de eterno. Nada! Então como podemos conhecer a eternidade? Conhecendo o tempo! Assim como para conhecer um elemento químico simples, temos de partir do composto, decompondo (...) Assim também só conhecemos a eternidade a partir da decomposição do tempo. Então, antes de entender e de dizer o que é a eternidade, entendamos o que é o tempo. O tempo sim, o tempo é nosso irmão. Estamos casados com o tempo indefectivelmente. Somos tempo. Nascemos, crescemos, envelhecemos e morremos porque somos tempo. Os livros amarelam nas bibliotecas porque são tempo. Muito bem, o que é o tempo? A definição clássica, aceite por São Tomás, é dada por Aristóteles: “O tempo é o número (ou numeração, ou contagem) do movimento segundo um antes e um depois”.

Nougué, Carlos. Tempo e Eternidade na Idade Média. Em Mirabilia11. Jun-Dez 2010.

A marcação do tempo é irrelevante para Deus porque Ele o transcende. Pedro (2-3:8) advertiu os seus leitores de que não permitissem que o seguinte facto, crítico, lhes escapasse.

A perspectiva de Deus sobre o tempo é muito diferente da da humanidade... O Senhor não conta o tempo como nós. Ele está acima e fora da esfera do tempo. Deus vê todo o passado e o futuro da eternidade. Na perspectiva eterna de Deus, o tempo que passa na Terra é irrelevante. Um segundo não é diferente de uma eternidade; um bilião de anos passa como um segundo para o Deus eterno.

Requerem-se provas da realidade física dessa eternidade que existe em bloco; existem. Compreenda-se que, para entender a eternidade em bloco, é indispensável situarmos-nos fora dela; no tempo do Espírito.

Sonhos premonitórios

O hipotético mecanismo da consciência atrás aludido exige o universo-bloco, constitui um indício do mesmo. Mas uma hipótese não prova outra hipótese.

Os sonhos premonitórios, que quase todos experimentamos, são facto. São uma das provas da presença do futuro. E, sendo assim, também a prova da presença do passado. De facto! Se o futuro já lá está, também está o passado desse futuro, que somos nós tal como estará o passado deste presente. Se demonstramos a presença do futuro, fica demonstrada a presença do passado.

Os sonhos premonitórios poderiam ser meras coincidências ou antecipações lógicas do que se espera vir a ser. Mas são coincidências demasiado exactas e frequentes para deverem ser tomadas como fruto do acaso. E são sonhos de pequenas coisas, coisas insignificantes de mais para suscitar preocupação, expectativa ou dedução.

A mera experiência pessoal do autor, o qual não é dotado de especiais dons místicos, regista alguns sonhos premonitórios. Dá um exemplo. A filha havia saído à noite, com amigos. O autor sonha que ela lhe pede para a ir buscar a um local da cidade afastado, nada habitual. Passadas duas horas, é acordado por um telefonema da filha solicitando que a vá recolher a esse exacto local.

A falecida esposa deste mesmo autor, professora, sonhara que uma auxiliar da escola comparecia ao serviço magoada num braço. No dia seguinte, a auxiliar traz a mão empanada por se haver cortado fortemente num dedo.

O autor sonhou que os mastros de um barco à vela quebravam ao passar sob uma ponte demasiado baixa. Dois ou três dias depois, deparava-se, no You Tube, com um vídeo onde um camião perde a carga ao passar sob um viaduto.

Ainda o mesmo autor, sonhou com uma paisagem de construções confusas e distantes, que interpretou, após acordar, como ruínas. Dominava uma tonalidade amarelada. Anos depois, encontrando-se em Veneza e olhando para a outra margem do Grande Canal, percebeu, inopinadamente, que o tal sonho, ocorrido vários anos antes, se referia àquele momento.

A premonição dificilmente se aproveita como preventiva pois acontece na ausência de contexto temporal ou espacial definido. Por vezes, traduz-se num simbolismo que só a posteriori se desvenda. É a ocorrência do facto previsto que ilumina de significado o anterior vislumbre premonitório. Em mais raros casos, a premonição ocorre no estado de vigília, por vezes, mas nem sempre, sob um estímulo directamente associado à futura ocorrência.

A confiança na verdade da ocorrência de premonição depende, naturalmente, da proximidade e fidedignidade da testemunha. À nossa volta haverá sempre alguém que, convenientemente solicitado, nos confidenciará uma premonição sua -- premonição exacta e razoavelmente precisa e não apenas vago pressentimento --. Não pretendemos afirmar que o pressentimento não possui valor; porém, é muito menos inegável.

Alguns livros compendiaram premonições. Há que confiar no critério do autor. Por vezes, tal ou tal autor confunde premonição (do que não ocorreu) com clarividência (do que já ocorreu ou está a ocorrer).

Também os animais podem manifestar capacidade premonitória:

... Lewis trouxe o seu cachorro numa visita a San Francisco. Dirigiu-se, de carro, ao Parque Lafayette para uma caminhada. No entanto, o cão, um boxer, recusou-se a sair do carro. Latia, agitado. Então, Lewis levou-o de volta ao hotel, e o cachorro pulou, feliz, do carro. No dia seguinte, quando passava pelo parque, viu que uma enorme árvore havia caído sobre um carro no local exato onde ela havia estacionado no dia anterior. Lewis soube, entretanto, que a árvore havia caído minutos depois de ela ter ido embora, no dia anterior.

Khatri, Vikas. Dreams & Promonitions. Pustak Mahal, Delhi, 2006.

John Dunne, reputado engenheiro inglês, publicou, em 1927, o seu famoso An Experiment With Time, onde descreve os seus numerosos sonhos premonitórios e expõe a teoria, eternalista, que tal conjunto de sonhos lhe inspirou. É ele o primeiro a explicar a consciência a partir do eternalismo embora William James o houvesse já sugerido:

No meu sonho, jatos de vapor jorravam para cima. Eu reconheci o lugar como uma ilha com que sonhei antes. Quando vi o vapor jorrando do chão, engasguei: "Bom Deus, toda a ilha vai explodir.” Lembrava-me de ler sobre o vulcão Krakatoa, onde o mar, abrindo caminho para o coração do vulcão através de uma fenda submarina, se transformou em vapor e explodiu toda a montanha. Fui tomado por um frenético desejo de salvar os habitantes desavisados. Durante todo o sonho, o número de pessoas em perigo obcecava a minha mente. Há uma observação a ser feita aqui. O número de pessoas declaradas mortas foi, não como eu havia sustentado durante todo o sonho, quatro mil, mas quarenta mil. Então, a minha maravilhosa visão estava errada. Porquê, no sonho, tive essa ideia de quatro mil? Claramente porque a minha premonição consistiu na visão antecipada de um artigo de jornal onde se referiam quarenta mil vítimas e que, em sonho, “li” apressadamente como quatro mil.

Dunne, J. W. An Experiment With Time. A. & C. Black, LTD, London, 1929

A narrativa precedente informa-nos de que a premonição, ao contrário da profecia, não provém, directa, dos factos previstos mas da experiência, ou da notícia, que deles o premonitor terá. Mesmo a mulher que, da margem, vendo deslizar nas águas o recém lançado Titanic, entra em pânico clamando que o monstro de aço irá em breve soçobrar.

Não é ousado concluir-se que a corrente da consciência, na ausência de foco sobre a objectividade material contemporânea, o que sucede no sonho, pode espraiar-se, adiantando-se à contemporaneidade e antecipando o futuro.

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