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Acerca do Plano Divino
A alma ao serviço do Plano Divino
O Espírito (Santo) de Deus
Partições e hierarquia
A consciência em Deus
Subjectivo e objectivo
Do objectivo ao subjectivo -- o sentimento, bagagem da alma
O Espírito Santo
Partições e hierarquia
Uma vez que Deus é Espírito impõe-se a pergunta: -- Porquê Deus criou o mundo material? -- Como a alma é, por definição, a entidade que relaciona os dois mundos, material e espiritual, surgem duas perguntas: -- Qual o estatuto da alma no Espírito (Santo) de Deus? Que transporta a alma do material ao espiritual?
Entretanto, outra pergunta, mais fácil, já foi respondida: -- A alma introduz o livre-arbítrio, próprio do espírito, na rigidez do mundo material infundindo, neste, a Vida. O livre-arbítrio supõe dois princípios, a liberdade e o amor. Ou, melhor, a liberdade dirigida pelo amor.
Antecipemos as respostas que entendemos dar às três perguntas por responder. As almas são as partes mais elementares do Espírito (Santo) de Deus; as almas transferem para o Espírito o conhecimento objectivo; Deus criou o mundo material como instrumento do seu Plano que é o de facultar às suas partes a individualidade, isto é, uma vontade própria.
No início do Tao Te Ching, de Lao Tse, pode ler-se:
O Tao de que se pode falar não é o próprio Tao. O nome que pode ser dado não é o próprio nome. O inominável é a fonte do universo. O nomeável é o originador de todas as coisas.
Portanto, muitas vezes, sem intenção, vejo a maravilha do Tao e, muitas vezes, com intenção, vejo suas manifestações. A sua maravilha e as suas manifestações são uma e a mesma coisa.
Desde o seu surgimento, foram chamados por nomes diferentes. A sua identidade é chamada mistério. De mistério a mistério adicional: A entrada de todas as maravilhas!
Mais adiante, se diz:
O Tao dá origem a um. Um dá origem a dois. Dois dá origem a três. O três dá origem a todas as coisas.
Ibidem
O Pai nada deseja que não queira e nada quer que não crie. O Pai proclama em Si mesmo: Eu Sou, Eu Quero, Eu Crio! Atrevamo-nos, então, a sugerir: O Pai fez-se Ele, em si mesmo. Foi assim que nasceu o Filho. O Pai viu que o Filho, sendo Ele, era Outro e alegrou-se. O Filho e o Pai estão no Pai.
Pode conceber-se que o Espírito Santo é constituído por espíritos resultantes da divisão de outros espíritos a eles superiores. Da continuação deste processo de divisão -- que é um processo de criação radical, porque o espírito que se divide permanece inteiro -- resulta uma infinidade de espíritos perfeitamente hierarquizados, desde o espírito de ordem 0, a Alma do Pai, propriamente dita, até aos espíritos mais elementares, as almas dos humanos.
Se tal repartição de espíritos ocorrer 250 vezes, o número de espíritos de ordem mais baixa, as almas, será superior ao número de átomos existentes em todo o universo conhecido. Bastariam 60 ordens de repartição para gerar um número de almas igual ao número de gotas de água presentes em todos os oceanos da Terra. Interessante notar que o número total de espíritos de ordem superior a uma dada ordem será o mesmo, menos um.
Até certa ordem, os espíritos são anjos. A partir dessa ordem, os espíritos já não possuem a amplitude (é o termo que nos ocorre) que caracteriza os anjos.
Os anjos são figuras importantes em muitas tradições religiosas. O nome de anjo é dado, amiúde, a todas as classes de seres celestes. Os muçulmanos, zoroastrianos, espíritas, hindus e budistas, todos aceitam a sua existência, dando-lhes variados nomes. A cultura popular deu origem a um copioso folclore sobre os anjos o qual, muitas vezes, se afasta bastante da descrição mantida pelos credos institucionalizados das religiões.
Dois factos parecem seguros: -- os anjos são em número imenso; – existe entre eles uma hierarquia de capacidades de acordo com a sua precedência e proximidade de Deus. A gravura seguinte, de Gustavo Doré, retratando o Paraíso, é, disso, ilustração, dispondo-se os anjos em círculos concêntricos, em torno do Pai.
As entidades espirituais organizam-se numa hierarquia natural, estabelecida por relações de divisão e de inclusão, de acordo com a dupla e harmoniosa lei da liberdade (na divisão) e do amor (pela inclusão). A individualidade de uma entidade superior não prejudica nem é prejudicada pela individualidade das entidades que ela em si criou, que nela se incluem e que a constituem.
O mundo espiritual, o Espírito, é o pensamento de Deus, tão vasto e diverso que é, protagonizado pelas entidades angélicas referidas. Não podemos fazer ideia de como opera a consciência no plano espiritual. Apenas sabemos que, à partida, na ausência de objectos para além das partições que Deus entendeu estabelecer em Si, a consciência é subjectiva, ou melhor, é inter-subjectiva. As entidades espirituais reconhecem-se em si, pelas partes que as constituem na ordem inferior da partição divina e reconhecem-se entre si, como partições distintas de uma mesma entidade de ordem superior.
Assim, cada entidade espiritual é o resultado particular da presença das restantes, umas que lhe são interiores, outras que lhe são exteriores e com as quais compõe entidades superiores. O amor é o seu estado natural uma vez que se encontram integradas. No entanto, o exercício da liberdade é fortemente limitado, não por impedimento superior mas porque lhe faltam elementos objectivos que, a tal liberdade, sirvam de pretexto.
As almas encarnam em indivíduos físicos com um duplo propósito. Dotar-se a si mesmas de consciência objectiva; -- transpor para o Espírito a consciência objectiva, através do conhecimento.
Segundo o Plano do Pai, sob o tríplice princípio da liberdade, conhecimento e amor, o Espírito vive um processo de reconfiguração e glorificação. À consciência inter-subjectiva, própria do Espírito puro, é sobreposta a consciência objectiva, própria do mundo material. A consciência objectiva, no Espírito, tem o poder de criar “mundos materiais.” Assim, o mundo material é um mero acessório, mas indispensável, da renovação do mundo espiritual.
O Pai quer que as partes sejam como o todo. Que as suas criaturas sejam à sua imagem; se assim não fossem Ele seria um criador menor. É a tarefa das humildes almas desenvolver uma consciência autónoma a partir das experiências do mundo; introduzir no Espírito a objectividade. Substituir a inter-subjectividade por uma inter-objectividade.
Construir mundos partilhados, no espírito! O conhecimento introduz no Espírito um novo princípio que se acrescenta, organicamente, à liberdade e ao amor. A liberdade, que era, antes e apenas, possibilidade torna-se sentido. O amor, que era, antes e apenas, união torna-se partilha e coincidência.
A alma seria, originalmente, livre e inconsciente. O indivíduo dispõe de consciência mas não é livre. Da alma encarnada resulta uma consciência livre a qual, no plano terreno, se manifesta pelo livre arbítrio e, no plano espiritual, pela reconstrução do Espírito (Santo) de Deus, agora, de baixo para cima.
A consciência em Deus
Como pode Deus ter consciência de Si mesmo? Para a ter, teria de haver outro Deus, igual a Ele, ainda Ele, com quem pudesse dialogar. Se Deus se repartir em dois, permanecendo um, dialogará Consigo mesmo em Si mesmo. Quando dizemos “repartir” pode estabelecer-se um mal entendido. A repartição de Deus não determina que as partes sejam menores que o todo. O todo e as partes são infinitos tal como o conjunto dos números pares e o conjunto dos números impares são tão infinitos como o conjunto dos números inteiros do qual resultam.
É preciso que entre as duas réplicas de Deus exista alguma diferença para que o diálogo se estabeleça. A diferença entre as duas partes em que Deus se reparte estabelece-se pela liberdade. Cada versão de Deus assume vida própria. O problema é que só assumirá vida própria se, por sua vez, se repartir. E assim sucessivamente.
Talvez, dessa forma, se haja constituído o Espírito (Santo) de Deus. Uma infinidade de consciências individuadas mas integradas, culminando na consciência absoluta do Pai.
Até que chegamos à menor divisão possível, a alma! Para sustentar a consciência das almas criou Deus o mundo material, com a multitude de réplicas cronologicamente sequentes -- referida atrás -- que lhes oferece cada humano em que encarnam. Essas réplicas constituem a tal cadeia de eus consecutivos, ao longo do tempo material. O mundo material faculta a cada alma múltiplas instâncias do indivíduo em que encarna. A alma pode agora dialogar consigo mesma, ao acrescentar-se à consciência individual do animal humano.
As almas, ao não poderem replicar-se, ao não poderem adquirir consciência própria no plano do Espírito, prejudicariam a consciência no nível superior e assim sucessivamente, até à individualidade do Pai. A consciência da alma não é apenas uma conveniência própria é, também e sobretudo, uma conveniência do Espírito.
Eis o plano de Deus! O Espírito é a própria consciência divina, ou melhor, o imenso jogo de todas as consciências em Deus. São os anjos e por aí abaixo. Para que as almas, as individualidades menores do Espírito, também participem do jogo das consciências, Deus criou o mundo físico.
O mundo material é indispensável ao Espírito. Ainda por outra razão. Para haver diálogo interior, consciência, não bastam dois interlocutores irmanados. É necessário conteúdo, motivo. Cada um fala consigo mesmo acerca de algo. Conteúdo concreto, conteúdo que possa descrever-se por palavras. A consciência pode repartir-se, é plástica, enquanto os conteúdos concretos constituem estruturas únicas. Reparti-los é destruí-los, dissolvê-los. Quando dois dialogam, têm em comum um certo corpo de conteúdos. O diálogo permite a sua exploração, desenvolver o seu estudo.
Assim, Deus procede a uma individuação das consciências e a uma normalização de conteúdos. A individuação das consciências envolve repartição e hierarquia sem prejuízo da liberdade. A normalização dos conteúdos envolve a criação de um mundo único e partilhado de objectos, a matéria em primeira instância, figurações espirituais, mas figurações consistentes, depois.
Não devemos continuar a pensar o mundo material apenas como uma espécie de remedeio de Deus para a insuficiência das almas. Quando Deus expandiu a individuação do Espírito sabia muito bem o que estava a fazer. Criou o mundo material, ao mesmo tempo, aquilo que é o “estrado dos seus pés” nas palavras de Jesus. O mundo material, em si, é rígido, morto, só aparenta vida através da sequencialidade das coisas e dos correspondentes estados de consciência que dessa sequencialidade partilham. Pelo contrário, o mundo espiritual é vivo, é livre, mas depressa se esgotaria pela ausência de conteúdo concreto, de motivo.
Então, cabe às almas uma importantíssima tarefa. Implicar-se nos dois mundos. A dificuldade é uma oportunidade. As almas vão iniciar a reversão do processo de individuação do Espírito, exercendo a sua liberdade no sentido da re-união daquele através da partilha de conteúdos -- conhecimento -- sempre sob a égide do amor.
Se a liberdade, à imagem e semelhança do Pai, exige a individuação, a intenção independente (passe o pleonasmo) parece que a individuação prejudicará o amor, princípio fundamental (e natural) do Espírito. Mas só se pode amar o que é diferente. Amar uma imagem no espelho não é amar mas o seu contrário.
Pouco tempo atrás, a sra. Besant (teosofista) anunciou, num artigo interessante, que só havia uma religião no mundo, que todas as fés eram apenas versões ou perversões dessa religião, e ela estava totalmente preparada para dizer qual era. Segundo a sra. Besant, essa igreja universal é simplesmente o eu universal. É a doutrina de que todos nós somos realmente uma só pessoa; de que não há muros reais de individualidade entre um ser humano e outro. Se assim posso dizer, ela não nos diz para amar o próximo; ela nos diz para sermos o nosso próximo.
Nunca ouvi na minha vida uma sugestão da qual eu discorde com mais veemência. Quero amar o próximo não por ele ser eu, mas precisamente por ele não ser eu. Quero adorar o mundo, não como quem gosta de um espelho, por ele ser o eu de quem vê, mas como quem ama uma mulher, por ela ser inteiramente diferente. Se as almas estão separadas, o amor é possível. Se as almas estão unidas, o amor é obviamente impossível. Pode-se dizer que alguém ama vagamente a si mesmo, mas não se pode dizer que alguém possa apaixonar-se por si mesmo, ou então, se isso vier a acontecer, só pode ser um namoro monótono. Se o mundo está cheio de eus reais, pode haver eus que realmente não sejam egoístas. Mas, segundo o princípio da sra. Besant, todo o cosmos é apenas uma enorme pessoa egoísta.
Chesterton, G.K.Ortodoxia. Editora Mundo Cristão.2012
A reversão da evolução do Espírito -- a criação divina não se deteve -- não é decalcada, a re-união não segue, em sentido oposto, o caminho da individuação. Imaginemos um baralho de cartas que utilizamos pela primeira vez. As cartas estão perfeitamente ordenadas. Depois, são baralhadas, distribuídas e, finalmente, reunidas segundo as regras de um jogo. Tais as almas e os anjos, como as cartas no jogo, misteriosamente distribuídas no plano material e, depois, no Espírito (Santo) de Deus.
Este esquema, um pouco abstracto, compreende-se. A obra do Criador é permanente. O seu propósito de reconstituir o Espírito a partir dos bordos, Espírito que foi, por Ele, expandido a partir do centro, poderá ter em vista obter uma harmonia mais rica, mais ilustrada, mais feliz; mais gloriosa, adoptando a terminologia cristã.
Deus não é ocioso nem cioso. Compraz-se na liberdade criadora dos seus filhos tanto como na confirmação da sua amorosa unidade. O Pai procede do centro e o Filho procede da superfície da imensa esfera que o Espírito é. A fina superfície do Espírito é o mundo material. Pela extensão prodigiosa do universo se poderá presumir a imensidade do Espírito.
Santo Agostinho de Hipona, grande teólogo e doutor da Igreja, exauriu-se para desvendar os enigmas do Espírito. Chegou à conclusão de que, devido à limitação da mente, nunca o poderemos compreender senão quando, na vida eterna, nos encontrarmos na intimidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, cuja Rainha é Maria Santíssima.
O que podemos fazer é, com base em factos -- experiências místicas -- identificar relações funcionais entre o mundo material e o mundo espiritual, entre as vidas terrenas e a vida no espírito. Ao fazê-lo, evitar cair na ratoeira da materialização do Espírito, isto é, encarar-se a dimensão do tempo espiritual como se fora uma dimensão adicional do mundo físico. É uma dimensão adicional implicada nas dimensões materiais, mas com propriedades radicalmente distintas. Aliás, tal como o tempo material se coordena com o espaço mas não é, apenas, mais espaço.
Não nos pareceu possível compreender a vida da alma, distribuída por dois mundos tão distintos, sem aprofundar o conhecimento quer da estrutura do mundo material quer da organização do mundo espiritual. O desafio valia a pena. Uma visão coerente dos dois mundos em relação funcional, permitirá compreender a perfeita unidade do Pai na prodigiosa diversidade do seu pensamento e o papel modesto, mas indispensável, da alma na glorificação do Espírito Santo. O plano divino é uma construção ordenada, não uma cascata de correcções ou melhoramentos.
Fixemo-nos, então, nisto. Deus criou o universo. No universo, criou a vida. Na vida, afeiçoou o homem para que, no homem, na consciência do homem, enxertasse a alma. A humilde alma não só recebe a consciência que lhe faltava como adquire os conteúdos de conhecimento que ilustrarão o Espírito, o qual, até aí, se limitava à contemplação. Para além disto, não sabemos muito mais. Resta-nos tentar intuir a vida da alma na fronteira de dois mundos. Com tal empreendimento, atingimos o propósito último deste trabalho.
Subjectivo e objectivo
A wikipedia, no seu artigo Objectividade (Filosofia) afirma que:
Objetividade é a qualidade daquilo que é objetivo, externo à consciência, resultado de observação imparcial, independente das preferências individuais.
No artigo Subjectividade:
Na teoria do conhecimento, a subjectividade ... tem como oposto a objetividade, a qual se baseia num ponto de vista intersubjetivo, isto é, que pode ser verificável por diferentes sujeitos.
A crueza da definição de objectividade é patente. Um atributo da consciência não pode ser colocado fora dela. Entretanto, ao definir subjectividade, por contraponto à objectividade, esclarece-se que a objectividade se confirma por confronto e coincidência de uma pluralidade de subjectividades; daí, a sua convencionada exterioridade.
Na versão em Inglês do mesmo artigo na Wikipedia, Objectivity:
Em filosofia, objetividade é o conceito de verdade independente da subjectividade individual (preconceito causado pela percepção, emoções ou imaginação). Uma proposição é considerada como tendo verdade objetiva quando as suas condições de verdade são satisfeitas sem viés causado por um sujeito senciente. A objetividade científica refere-se à capacidade de julgar sem parcialidade ou influência externa. A objetividade na estrutura moral exige que os códigos morais sejam avaliados com base no bem-estar das pessoas na sociedade que os segue.
É infantil, até perigoso, identificar verdade e conformidade. Mais perigoso identificar moral e bem-estar pois que o bem-estar é presente e a moral, eterna, transcende o presente antecipando o bem-estar futuro. O favorecimento da objectividade e a desvalorização da subjectividade abrem caminho a uma fiscalização que reduz a Verdade ao preconceito e o Bem à satisfação vulgar.
De acordo com a filosofia, sujeito é o que observa ou actua, objecto é o que é observado ou actuado. Entretanto, a linguagem comum parece querer estabelecer ao contrário; sujeito é o que se acomoda a uma exterioridade enquanto o objecto, feito objectivo -- ou propósito -- comanda.
Objectividade e subjectividade não as pretendemos considerar utilitariamente, a objectividade como eventual produto cumulativo de subjectividades convergentes. Nem como atributos opostos e mutuamente exclusivos. Ambas são possibilidades da consciência, necessárias e complementares.
Tivemos de introduzir a questão porque está no âmago do processo da consciência de si em si, o processo da própria existência ou, se se quiser, da existência própria. Recusemos, então, sair do âmbito do estudo da consciência; evitemos conceitos mal definidos ou menos relevantes. Para evitar o delírio da abstracção, a via da fantasia, adoptemos uma tradução visual. A consciência é representada por uma figura (no plano do papel); o estado subjectivo é representado pelo contorno da figura; a objectividade -- que não é um estado mas um conteúdo -- é representada por elementos dispersos na figura da consciência.
Uma consciência é tanto mais objectiva quanto o seu conteúdo inclua mais formas, isto é, objectos. Os objectos, adquiridos em bruto, organizam-se constituindo objectos de ordem superior -- conceitos ou situações.
Do lado esquerdo representam-se conceitos; do lado direito, situações. Vê-se que as situações são conceitos de ordem superior. No entanto, os conceitos, pela repetição que exigem, são já siuações, embora elementares.
A totalidade do conteúdo objectivo da consciência constitui um único objecto, um mundo. Nenhuma consciência objectiva suporta dois mundos simultâneos. Não enveredamos por maior desenvolvimento da estrutura dos mundos, aqui desnecessária, ainda que seja uma preocupação antiga da filosofia. É assim que Boécio, pensador cristão do século V, esclarece uma questão que Platão levantara:
Inicialmente (Boécio) concorda com Aristóteles sobre a impossibilidade de ideias gerais serem substâncias, já que os géneros e as espécies são comuns por definição, e o que é comum a vários indivíduos não pode ser um indivíduo. Por outro lado, imaginemos que as ideias gerais são simples representações de nosso espírito, isto é, que nenhum objeto corresponda na realidade às ideias que temos deles. Mas um pensamento sem objeto não é sequer um pensamento. Logo, é preciso que os universais sejam pensamentos de alguma coisa...
A solução proposta por Boécio é que os nossos sentidos nos comunicam as coisas no estado de confusão. O nosso espírito, porém, tem a capacidade de distinguir nos corpos as propriedades que se encontram misturadas e separá-las. O espírito extrai dos seres corpóreos o que eles têm de incorpóreo, como os géneros e as espécies. Nós retiramos dos corpos a forma nua e pura, como as noções de animal e de homem, abstraídas de indivíduos concretos...
Josué Cândido da Silva. Os universais - Como conhecemos as coisas?
A importância da palavra falada e, depois, escrita, como instrumento da organização da consciência objectiva é fundamental. Pelo contrário, a subjectividade parece prescindir da palavra, substituída pela música e pela imagem. A poesia é uma actividade intermediadora onde a palavra suscita o símbolo.
Quando o único objecto da consciência é ela mesma -- o sujeito -- destituída de um mundo de objectos, a consciência é puramente subjectiva. Podemos então definir subjectividade como a parte da consciência que ela, por si mesma, é. Se uma consciência não assinala em si quaisquer formas ou objectos, é uma consciência puramente subjectiva, como quando um forte sentimento nos avassala.
Não se diga que a consciência puramente subjectiva é vazia. Na verdade, ela assume-se completa já que toda a objectividade -- o mundo -- é projectada na subjectividade. Usando a nossa esquemática, a área da objectividade projecta-se, conformando-a, na linha do perfil subjectivo da consciência.
Pode estranhar-se que o “peso” da materialidade objectiva caiba na “leveza” da subjectividade. Ainda que leveza e peso fossem descrições adequadas, não há que estranhar. A complexa paisagem musical gerada por uma grande orquestra pode ser codificada (digitalizada) numa sequência linear de zeros e uns. A única condição é que a cadência da aquisição dos dados -- amostragem -- seja suficientemente rápida. Cada amostra capta a pressão “instantânea” do ar. Um processo bem mais cru que o da audição e, no entanto, perfeitamente satisfatório. Assim, reproduzir a área da realidade material sobre a linha que a envolve é possível.
A subjectividade é o maior objecto que se apresenta na consciência. Tão extenso é que a sua observação directa não é possível. O que a mente pode fazer é deduzir algo da sua forma através do respectivo efeito sobre a geografia do mundo interior já que a influência é mútua, entre objectividade e subjectividade.
Ao definir a subjectividade como objecto (coincidente com o sujeito) coloca-se a questão da natureza desse sujeito que existe a priori, que pode subsistir sem conteúdo, que é forma pura. O leitor perceberá que é a alma.
Estados sucessivos de uma consciência
puramente subjectiva, a alma.
Do objectivo ao subjectivo -- o sentimento, bagagem da alma
Desvendar o Plano Divino exige perceber a necessidade do mundo material para o processo criativo, próprio do divino. Recordemos as nossas hipóteses: -- a consciência no animal é puramente objectiva; -- a consciência no espírito é puramente subjectiva; – a consciência humana, enquadrada pela alma, é, ao mesmo tempo, objectiva e subjectiva.
Acrescente-se nova hipótese: -- Ao regressar ao plano espiritual, a alma transporta, na sua subjectividade, na sua nova conformação, os efeitos, marcas, caracteres, da sua objectividade terrena.
Da alma inocente, à alma configurada pela vivência material (objectiva).
Deus pretende a transformação da subjectividade das almas a partir da objectividade das coisas com o intuito do acentuar a individualidade de cada alma a fim de que se dote de vontade própria. Antes, as almas só partilhavam da vontade geral do Pai. A vontade própria abre às almas três possibilidades:
-- Criatividade. Deus quer ser imitado, não se contenta em ser copiado.
-- Articulação significativa com outras almas. Deus quer amor mas prefere amor que seja desejo, intenção, compaixão, amor activo, não apenas o amor contemplativo dos anjos.
-- Conhecimento e estrutura, conteúdo objectivo que origine uma subjectividade significativa. Deus quer que as almas o conheçam através da sua obra, que o estudem.
O uso da palavra parece ser o critério divisor entre as duas formas de consciência, material e espiritual. O humano foi criado por Deus para pensar, para dialogar consigo mesmo. Para pensar, há-de falar. Em que língua se dialoga no Espírito? Será que os anjos prescindem da palavra?
Talvez a diferença se manifeste gradativamente. Acima da palavra estão os sentimentos, tal como a palavra se veio sobrepor às emoções, organizando e pacificando os respectivos conteúdos. Possivelmente, no mundo espiritual são os sentimentos que são racionalizados por uma linguagem que deles elabore um sentido ainda mais elevado, mais substancial.
A evolução da consciência parece caminhar tendo em vista uma integração cada vez mais ambiciosa. Sendo assim, os sentimentos que as almas comportam, condensação de experiências pessoais, hão-de ser integrados, no Espírito, numa compreensão mais ampla e mais firme. Sempre mais estrutura: a fibra solta, do linho, da lã ou do algodão. Da fibra o fio. Do fio o tecido. Do tecido o vestuário que a tudo dá sentido.
Os sentimentos reúnem, debaixo da sua expressão, palavras, emoções, experiências concretas. O que é o sentimento de mim mesmo senão uma certa reunião das minhas memórias, sem que as memórias estejam explícitas? O sentimento é plenitude.
Sendo assim, o valor espiritual de um sentimento está na sua amplitude. Quanto mais vasta e diversa a experiência terrena que aquele condensa maior a possibilidade de ser admitido como conteúdo espiritual legítimo.
A alma é uma fábrica de sentimentos. Os sentimentos são os bens que a alma leva para o Espírito. Também os utiliza na prática corrente. A intuição é uma manifestação mediúnica que ultrapassa a palavra.
Os sentimentos aparentam-se a impressões. O termo impressão inclui dois conceitos: permanência e forma. A gravura é o modelo mais adequado da bagagem espiritual. A sua apreensão preserva a liberdade do recipiente. Uma pintura ou uma foto são apresentações, ofertas, eventualmente, propostas. A escrita, pelo contrário, é declaração, eventualmente, uma ordem. Temos pois, entre a palavra e a imagem, uma contradição. A imagem está acima da escrita em alcance e, no entanto, é imediatamente concreta. A imagem liberta, a escrita constrange. A imagem impõe-se os limites de um quadro, a palavra pode estender-se como um cancro.
Embora se diga que um desenho vale mais do que mil palavras, como é que, através da partilha de imagens, se pode entabular um diálogo?
Pense-se na linguagem pictográfica. Embora cada pictograma seja traduzido oralmente por um som articulado, uma palavra, a fonética não revela a riqueza do conceito que o pictograma expõe.
Por outro lado, enquanto a fonética se evapora em mil variantes (os dialectos chineses) a linguagem escrita (em pictogramas) permanece una. Isto é, dois chineses de regiões diferentes podem não se entender, falando, mas continuam a entender-se, escrevendo.
O pictograma chinês de “jardim” contém 5 conceitos.
Cada pictograma é composto da reunião de pictogramas mais elementares. Neste tipo de linguagem escrita, a individualização das coisas não anula a relação que as coisas mantêm entre si, o conceito. E, da reunião de conceitos diversos, surgem novas coisas.
A música é outra forma de expressão que dispensa a palavra. Os anjos entoam hinos. Também a música transporta sentido. Um sentido profundo mas tão subtil que pede a palavra para o trazer à superfície do entendimento. A música e a imagem, enfim, a arte, são, na Terra, o anúncio do Céu.
A associação da Arte ao Divino não é meramente instrumental -- como em servir os ofícios, construindo utilitariamente ou, trivialmente, decorando, os lugares de culto.
A estética teológica busca descobrir e examinar as conexões entre a crença religiosa e experiências sensoriais, incluindo as que estão associadas às artes... explorar o papel desempenhado pelos sentidos - com os seus associados poderes de memória e imaginação - na consciência de Deus. Como a arte contribui para a fé?
Uma experiência de beleza perceptual pode orientar a pessoa para a natureza de Deus: isto é, focando a nossa atenção no que é perceptualmente desejável, valioso e interessante por si mesmo, também nos estaríamos a orientar para o que é, em última análise, mais desejável, valioso e interessante por si só, ou seja, Deus.
A arquitetura de uma igreja, por exemplo, não só fornece espaço útil. Pode, realmente, comunicar algo sobre Deus. Por seu meio, Deus coloca-se à disposição, para ser experimentado.
A arte requer e liberta uma ascese ou disciplina da visão para que aprendamos como olhar com pureza para o âmago da vida humana alterando a nossa maneira de ler o significado do mundo. A nossa própria existência é reformada a partir da experiência do que vimos.
McCullough, James. How Art Contributes to Faith. Academia Letters, January 2021.
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